Fernando Boppré
Historiador
Parte da discussão sobre políticas culturais está comprometida com a retórica provinda da necessidade de preencher formulários das leis e incentivos.
Parte 1 O que pode ser dito: de uma parte, encontra-se na pauta do dia o debate sobre a política cultural, os modelos de fomento à produção, as estratégias de circulação e democratização ao acesso aos bens culturais. No Brasil, a discussão é perpassada pelas questões colocadas pelo Estado, já que a ele cabe normatizar as atividades culturais e também promovê-las.
Nestes termos, o discurso e a prática da cultura pouco se distinguem (e isso causa estranhamento) da política pública da área de transportes, por exemplo. Afinal, nos setores estratégicos da sociedade brasileira, o Estado sempre reivindicou o protagonismo (não por acaso o desejo da maior parte dos brasileiros é se tornar servidor público, já que essa conquista significa o acesso ao poder nas mais diversas esferas da vida pública).
O enredo desta lógica encontra-se no fato de que um dos artistas mais libertários da história recente do país, Gilber to Gil, tornou-se um funcionário comissionado do mais alto escalão da República. Não obstante, a gestão de Gil (seguida pela de Juca Ferreira) à frente do Ministério da Cultura conseguiu estabelecer uma dimensão pública para o setor. Projetos como o vale-cultura e a reforma da Lei Rouanet tornaram-se manchetes. Finalmente, o que esteve em jogo foi um debate acerca de uma proposta efetiva de política cultural (ao contrário da inércia da gestão de Francisco Weffort nos anos FHC).
Ao enviar ao Congresso Nacional projetos que, por vezes, inauguravam um marco legal para o setor, constituiu-se um território discursivo onde se tornou possível dialogar sobre políticas culturais não apenas para a federação, mas também para estados, municípios e instituições privadas. Concomitantemente, alargou-se a noção do que se compreendia por cultura no Brasil com a inclusão das minorias não apenas nos discursos, mas também nos editais de fom ento, como àqueles dedicados aos grupos ciganos, GLBTS, indígenas, quilombolas, entre outros.
De modo geral, contudo, pouco ou quase nada se fez sentir em nível estadual ou municipal. Ainda que diversos programas estivessem articulados em uma gestão compartilhada (como no caso destacado dos Pontos de Cultura em que União e Estados eram parceiros na execução de projetos de referência no fomento e na distribuição de iniciativas culturais por todo o país), secretarias e fundações continuaram a repetir modelos ultrapassados de gestão e promoção da cultura.
O Estado de Santa Catarina, por exemplo, fracassou na tentativa de criar um Sistema Estadual de Cultura. O Funcultural é sinônimo de inoperância e burocracia nos últimos anos. Em termos conceituais, a política cultural estadual insistiu na lógica da importação de modelos culturais cujo derradeiro e lamentável capítulo encontra-se na ambição de se instalar a Academia de Belas Artes de Florença pelas bandas de cá. Não custa lembrar que, há poucos meses, o Centro de Artes da Udesc esteve fechado por semanas em virtude de uma caixa dágua que não recebeu a devida manutenção e estourou sobre a cabeça de alunos e professores.
A base para qualquer política cultural deve ser o diálogo com o circuito das artes. Caso houvesse diálogo, a proposta para as artes visuais, por exemplo, certamente seria no sentido de se investir na criação de novos Centros de Artes da Udesc em cidades do interior do Estado. Ou, então, prover os museus estaduais de orçamentos próprios que viabilizem programas de ação cultural e educativa, uma agenda de exposições de qualidade, a aquisição de acervo, a realização de salões e o financiamento de residências artísticas, por exemplo.
Parte 2 O que é interdito
É preciso reconhecer que parte da discussão sobre as políticas culturais está comprome tida tão somente com a retórica provinda da necessidade de se preencher corretamente aos formulários das leis e fundos de incentivo à cultura. Afinal, neles é preciso responder aos planos de distribuição, às estratégias de ação, às justificativas, enfim, a uma série de campos pré-formatados que, em última instância, acabam por estabelecer o território daquilo que se é possível e daquilo que se é impossível pensar no âmbito cultural.
Cada instituição deve ter sua política: os museus, uma política de acervo; os teatros, uma política de seleção dos espetáculos. As instituições se tornaram vaidosas: é preciso dar visibilidade a suas ações, fazer com que seus logotipos estampem materiais gráficos ou iluminem as telas de cinema. Neste contexto, é bem provável que nos últimos anos o logotipo da Petrobras tenha mais horas de exposição na mídia do que o presidente Lula.
Há verdadeiros especialistas no assun to, até mesmo uma disciplina chamada marketing cultural. Ao mesmo tempo, uma vasta bibliografia começa a ser produzida e editada sobre o ofício da cultura. Cálculos mirabolantes apontam a porção do PIB gerado pelas atividades ligadas à cultura. Instituições como a Fundação Getúlio Vargas dedicam cursos acadêmicos ao assunto. Oficinas, palestras e todo um campo de conhecimento se organizou em torno da questão com o pretexto de se formar bons gestores culturais.
Mas, afinal, para que tanto barulho? Por sinal, quem é esse profissional? Salvo exceções, ele não se aprofunda em nenhuma disciplina ou campo artístico em específico. Ele lê pouco. Ou quase nada. Em contrapartida, diz-se capacitado a lidar com as mais diferentes manifestações. Sabe fazer releases e emitir corretamente notas fiscais como ninguém. O discurso normativo diz: ao artista é difícil produzir e realizar o seu trabalho ao mesmo tempo. Então, chama-se o gestor cultural como outrora se chamava a Formiga Atômica.
Não custa nada questionar: será mesmo esse o único modo de se fazer cultura no país?
Os maiores artistas que conheci se diziam amadores. Clarice Lispector se negava a se tornar escritora. Repudiava a ideia de literatura. Arthur Bispo do Rosário desconhecia o circuito das artes visuais que, em breve, tomaria conta de seu trabalho e o faria refém dos museus. Marcel Duchamp colocava em xeque sua posição de artista seja em Paris ou em Nova York.
Não obstante, em breve, cada artista, cada gestor cultural será obrigado a se inscrever em algum tipo de cadastro. Não me perguntem qual. Mas ele existirá e o artista deverá se cadastrar como proponente e não como artista. E a desculpa será a necessidade de se recolher informações precisas para a construção de uma política cultural democrática.
Epílogo
Política cultural: este termo inflac ionado, por excelência. Em tempos de eleição, cobrar-se-á de cada candidato o seu plano de governo que apresente uma política clara e eficiente para o setor. Mas, se fosse possível, seria melhor o silêncio. Ao menos nele seria possível repensar o estado das coisas em que vivemos.
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