quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Cafuné é bom. No cinema e em casa

Este é um filme diferente: no mesmo dia em que foi lançado nas salas de exibição de cinema, era também oficialmente disponibilizado no site Overmundo e nas redes p2p de compartilhamento de arquivos. Assim veio ao público Cafuné, o primeiro longa-metragem do cineasta Bruno Vianna, conhecido e premiado por seus curtas.

Estreando no circuito de cinemas, o diretor apostou em iniciativas ousadas e inovadoras para distribuir seu filme. Além de utilizar as redes tradicionais e virtuais, Vianna licenciou o filme em Creative Commons (a licença que autoriza a sociedade a utilizar a obra de acordo com condições pré-estabelecidas, nesse caso, uso não-comercial, afastando a idéia de "pirataria"). Mais do que isso, jogou, nas salas e na web dois finais diferentes e conclamou internautas a criarem novos desfechos para a obra, abrindo alas para a expressão criativa dos espectadores. Inaugurou, assim, um novo caminho para o cinema brasileiro.

Dois meses após a estréia, em 25 de agosto, Bruno Vianna conversou com o pessoal do projeto Open Business e fez uma avaliação sobre os caminhos escolhidos, seus impactos e repercussões.


Recursos Públicos e Cultura Livre

Cafuné foi vencedor do concurso para filmes de baixo orçamento do Ministério da Cultura. Para realizar o filme, Vianna recebeu R$ 600 mil, sem autorização para captar mais recursos, junto a outros financiadores, dadas as regras do edital. "Não faz sentido deixar de abrir um conteúdo que tenha sido financiado com dinheiro público", avalia o diretor. Cafuné estava pago no momento em que foi concluído, e ainda restaram alguns trocados para a divulgação, majoritariamente feita em "busdoors" (aqueles anúncios que ficam nas traseiras dos ônibus).

Há quem questione o investimento de recursos públicos na indústria nacional do cinema, visto que raras obras conquistam grande público. Há quem responda a isso alegando que o fomento com tais recursos é fundamental para se criar uma cinematografia nacional permanente, mesmo que com pouco público. E há, ainda, quem defenda que se o motivo anterior é o predominante, então essa cinematografia deve ser acessível a todos. Qual é o sentido de criar algo a que pouquíssimos terão acesso?

Para Bruno Vianna, no cinema brasileiro, os cineastas acostumaram-se a não ver saída para essa questão. "Pretende-se criar uma indústria audiovisual auto-sustentável. Por essa lógica, não poderíamos 'dar' o filme, se uma produtora investe dinheiro nele. Agora, se você faz um filme com dinheiro incentivado, e quando é concluído está pago, toda a bilheteria é lucro, mesmo que sejam poucos espectadores". Bruno não vê sentido, portanto, em não liberar a obra, especialmente quando se trata de dinheiro público. "É o retorno do investimento na Cultura", reafirma.

Evidentemente, há muitos que não têm qualquer intenção em facilitar acesso às suas obras, e existem pressões, como em qualquer outro campo, para que isso não seja feito. Entretanto, os espaços para a emergência de novos modelos estão sendo criados e o que hoje é visto como 'alternativo' pode se tornar o mainstream de amanhã.

O diretor conhece as limitações que a indústria pode impor para a distribuição de filmes abertos, sobretudo forjadas de acordo com o modelo Hollywoodiano de cinema. Filmes geralmente pertencem não só ao diretor, como também ao produtor, distribuidor etc. Tal condição impõe limites no poder de decisão de um cineasta. Quando uma produtora investe na obra, por exemplo, é muito mais difícil propor o licenciamento aberto. Bruno Vianna acredita que se tivesse como parceira uma produtora mais 'comercial', ou uma distribuidora internacional, não teria tido a oportunidade de inovar na distribuição, e possivelmente tampouco na linguagem.

Mas afirma categoricamente que, ainda que tivesse realizado um filme grande, viável comercialmente, teria aberto mão dos benefícios auferidos com os direitos autorais, caso não houvesse restrições impostas pelos demais 'donos' da obra.


Público e Distribuição

Tanto o filme quanto o público ganharam com a distribuição nos cinemas e na Internet, embora não se possa calcular ainda os efeitos da decisão sobre a bilheteria. Também não dá para saber exatamente o número de pessoas que baixaram o filme, já que não está em um único servidor central. Mesmo assim, em uma breve visita às redes p2p, pouco mais de um mês após a estréia, o diretor pôde constatar 80 cópias espalhadas no eMule. Duas semanas depois, conferimos os downloads a partir do Overmundo: eles já somavam 490 cópias inteiras baixadas.

Não há dúvida de que a estratégia tenha dado mais visibilidade ao longa do que ele teria tido nos padrões tradicionais de exibição. Mas nem só em salas de cinema e redes p2p foi parar o filme. Ele alcançou também cineclubes, mostras e festivais, universidades e escolas, por onde o diretor andou dando palestras e participando de debates. Foram mais de 15 participações em um mês.

De acordo com a Filme B, empresa brasileira que acompanha e analisa o mercado cinematográfico, Cafuné ficou entre os 20 filmes mais vistos no Brasil durante algumas semanas, o que não é nada mal para um cineasta iniciante e para o pequeno número de salas em que o filme estreou.

O filme começou sendo exibido em cinco salas do Rio de Janeiro e apenas uma em São Paulo. Nas duas semanas que se sucederam à de estréia, ele saiu de duas salas de exibição por período, levando Cafuné a isolar-se em um único cinema na capital fluminense, e em outro, na paulista. Mas, na quarta semana, o público foi surpreendido pelo retorno do pequeno grande filme para três salas no Rio. "Quem quer ver o filme no cinema vai por causa do ritual, não por causa do filme. E a bilheteria foi aumentando com o tempo", conta Vianna.

Júlia Levy, da distribuidora e exibidora Estação, explica que isso foi possível graças ao momento do mercado cinematográfico e à agenda de lançamentos ligados à exibidora. Mas reconhece, também, que se não tivesse havido demanda, o filme não teria voltado às telonas. Ou seja, após três semanas com o filme nas redes p2p, o fluxo de habitués do tradicional programa 'cinema-e-pipoca' não havia trocado as filas das bilheterias por seus computadores. É possível supor que a distribuição na rede tenha, ao contrário do que se imagina, contribuído para a divulgação de Cafuné.

Quando um produto é licenciado por Creative Commons na internet, a conta a respeito do benefício a ser feita é muito simples e vale para qualquer nicho cultural. Se X corresponde ao número de pessoas que vão deixar de ver o filme por causa da distribuição online e Y corresponde ao número de pessoas que, se não tivesse havido a disponibilização online jamais iriam ter comprado a obra, o esforço sempre compensa quando Y é maior do que X. Essa equação mostrou-se favorável, por exemplo, com os livros do escritor Cory Doctorow, ou do professor Lawrence Lessig, todos licenciados em Creative Commons.

O Grupo Estação é famoso por lançar clássicos do cinema mundial, filmes independentes e cinematografias pouco difundidas desde 1990. Mas foi neste ano que o Estação começou a distribuir filmes nacionais, dando prioridade às produções classificadas, por eles, como 'inovadoras e alternativas', principalmente de pequeno e médio orçamento. Para eles, é uma nova fase e a estréia se deu justamente com Cafuné. A distribuidora está empenhada em descobrir e desenvolver novos formatos de distribuição, mais criativos e compatíveis com a realidade do mercado, mais atraentes e acessíveis para o público.

Levy conta que a decisão foi muito debatida entre a distribuidora, o diretor e a produtora - a Raccord Produções. Eles tinham como referência histórias de filmes boicotados pelos exibidores nos Estados Unidos, como Bubble, de Steven Sordenbergh, lançado simultaneamente nas TVs por assinatura, em DVD e no cinema. Mas o Estação tinha um trunfo: era distribuidor e exibidor - de modo que não boicotaria a si mesmo. Júlia Levy conta que foram inúmeras as reuniões para se discutir como seria feita a distribuição e que a decisão foi bastante estudada. Dessas reuniões, por exemplo, nasceu a proposta do distribuidor para que Vianna filmasse diferentes finais. A ousadia do diretor e a predisposição do distribuidor para adotar novos modelos, bem como o diálogo permanente entre direção, produção e distribuição, foram determinantes para emergência do modelo e para o resultado do trabalho.

Mesmo sabendo que qualquer um pode baixar o filme e queimar em DVD, Vianna vai lançar o produto. Aposta no fetiche da caixinha, e em adicionais como making of, comentários e outras novidades para agregar valor ao DVD.

Como todo artista gosta de viver do que faz, e como o projeto Open Business tem por objetivo investigar modelos de negócios abertos, perguntamos a Bruno Vianna quais seriam os caminhos que garantiriam acesso à cultura e rentabilidade. A reflexão do diretor sobre novos modelos de distribuição e de negócios para o cinema resgata e recria outras experiências e idéias. De sites que liberam o conteúdo, mas passam anúncio a cada exibição, a redes virais, existe uma série de alternativas possíveis. É possível autorizar a visualização de um filme, mas cobrar para se obter uma qualidade melhor, caminho aliás defendido por Joi Ito, famoso empresário japonês criador de sites com o Flickr e o Technorati.

Outro caminho possível para a indústria cinematográfica aberta poderia envolver incentivos para os usuários criarem uma rede viral. Tal esquema resultaria não só na massiva distribuição das obras, como na inclusão de novos agentes na cadeia produtiva. Espectadores se tornariam também distribuidores e teriam participação nos rendimentos da obra – "talvez seja mais interessante para o espectador e usuário compartilhar o filme com mais gente se ganhar uma porcentagem", reflete.


O fim da história

O diretor ainda espera ver propostas de reedição do final do filme – possibilidade e expectativa geradas pela presença da obra na Internet.

Bruno Vianna, que estudou novas tecnologias em Nova York, está sempre antenado nas inovações possíveis: "penso muito em convergência agora; alguns trabalhos funcionam de um jeito para cinema e de outro para internet. Não quero que as pessoas fiquem 2 horas na frente do computador. Cafuné é um filme para baixar, queimar no DVD e assistir na televisão".

Aliás, Vianna já revelou suas idéias fantásticas para os próximos longas que superam os limites de ousadia propostos por Cafuné. "Estou começando a desenvolver um projeto que será de cinema digital, montado ao vivo, eu como VJ do meu próprio filme". O filme será gravado em diversas partes, a serem combinadas de diferentes formas, de acordo com cada apresentação, que contará o diretor na sala de cinema, editando e exibindo em tempo real. "Não deu pra fazer isso com o Cafuné, que não é um filme para ser visto por partes; é para o ambiente sofá e cama", conta.

Você deve estar se perguntando: mas, e aí, se todo mundo fizer o mesmo? A visibilidade conquistada não está ancorada no pioneirismo de Vianna? É razoável imaginar que o ineditismo da iniciativa tenha, sim, contribuído para o "hype" em torno do filme. Mas não se resume a ele. Existe um potencial inovador, cujos limites ainda não são conhecidos. E é ainda nessa dimensão desconhecida dos novos modelos que reside a possibilidade de a indústria brasileira de cinema crescer solidamente.

Quem viver, verá.

Conheça o projeto Open Business
Leia mais sobre Cafuné
Baixe Cafuné (versão 73min)
Baixe Cafuné (versão 91min)

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