domingo, 17 de outubro de 2010

MEC quer unificar cursos em Cinema e Audiovisual

O MEC está sugerindo a unificação dos cursos de cinema no Brasil em torno do nome de "Cinema e Audiovisual", tal como foi proposto pelo Forcine- Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual. Com o objetivo de compartilhar essa discussão, publicamos o artigo do professor Fernão Ramos, "A Socine e os Estudos de Cinema na Universidade Brasileira. A Socine é a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, entidade criada em 1995 com o objetivo de abrir espaco para pesquisa em cinema nas universidades brasileiras.O congresso anual da Socine é o principal fórum de debates e discussao sobre a pesquisa dessa área no Brasil. O curso de graduacao em Cinema e Audiovisual, da UFC, deverá sediar o congresso da Socine no ano de 2012.
A SOCINE E OS ESTUDOS DE CINEMA NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
Estudos de Cinema é ainda uma área acadêmica em busca de reconhecimento. A SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual) foi criada em 1995 buscando abrir espaço na universidade brasileira para professores com pesquisa na área. A pesquisa com cinema tem origem na primeira metade do século e nos anos 50/60, ocupando inicialmente espaço na crítica, através trabalhos com arquivos e memória pessoal. A partir dos anos 60/70, com o desenvolvimento da graduação e da pós-graduação no Brasil, os Estudos de Cinema expandem-se no meio acadêmico, submetendo-se à demanda metodológica e a forma de produção intelectual das universidades. USP, UNB e UFF são pioneiras em cursos de cinema, inicialmente mais voltados para a formação prática. Em seguida, já nos anos 90, os Estudos de Cinema passam a ocupar um espaço amplo na estrutura da pós-graduação brasileira, com dezenas de mestres e doutores formados. Professores com publicações centradas na área de Cinema ocupam cargos chaves em associações de pares em Comunicação e em agências de fomento da área, estaduais e federais.
Com o desenvolvimento das novas tecnologias, alguns colegas sentiram necessidade de ampliar a denominação de nosso campo de trabalho para incluir, também, audiovisual. Cinema e Audiovisual passa a abarcar também estudos mais próximos das artes plásticas com imagens e sons em movimento, dando destaque para as relações interdisciplinares entre cinema e outras mídias, como a televisão ou a internet. Cinema, pensado de um modo amplo, cobre o campo do experimental. A constituição de estudos inter-disciplinares (cinema e literatura, cinema e teatro, cinema e televisão, etc) constituem um campo tradicional dos estudos de cinema, desde as antigas polêmicas do período mudo sobre "cinema puro". A maior ou menor 'especificidade', ou a maior ou menor 'mestiçagem', irá depender do objeto de estudo e das hipóteses traçadas. A particularidade da pesquisa em cinema no campo da comunicação está em trabalhar com uma arte narrativa que, em geral, passa ao largo da ênfase metodológica na questão midiática/tecnológica. A SOCINE tem essa especificidade. Trouxe os Estudos de Cinema para o meio acadêmico, deslocando-os das abordagens, com recorte mais impressionista, que cercavam antigas associações de pesquisadores na área. Sua criação, ainda nos anos 90, repercutindo encontros da COMPÓS, foi também uma questão de geração. O grupo que criou a SOCINE não teve participação decisiva da geração que introduziu o cinema na universidade brasileira nos anos 70 e que dominou o horizonte até o início da primeira década do século XXI. Foi composto por um grupo de pesquisadores que ficou espremido entre a centralizadora geração anterior e uma turma mais tranqüila e mais jovem. Encontrou novas linhas para nuclear a pesquisa em Cinema e expandiu a SOCINE da forma como expandiu. Hoje, a SOCINE realiza encontros com centenas de participantes e dezenas de mesas, mostrando o lado mais dinâmico dos estudos de cinema e audiovisual no Brasil.
É importante mencionar, na medida em que este texto está sendo publicado em fórum de Comunicação, que a área de conhecimento 'Cinema', para órgãos de fomento, como o CNPQ e CAPES, situa-se no campo das 'Artes', embora historicamente tenha se vinculado a Departamentos e Sociedades Científicas da área de 'Comunicação'. Assessores em 'Artes' muitas vezes não possuem familiaridade com projetos de pesquisa em 'Cinema', em geral transferidos para avaliação de professores vinculados a programas e departamentos de 'Comunicação'. A situação confusa reflete-se igualmente na composição de cursos e currículos em Cinema, carregados de disciplinas próximas ao campo da 'Comunicação', com pouca incidência de disciplinas de humanidades e artes como História da Arte, Teoria Literária, História do Teatro, Antropologia Visual, etc.
Temos hoje cursos de Cinema, ou Cinema e Audiovisual, nas principais universidades do país, com clara expansão nos últimos dez anos. Os cursos de Cinema pioneiros no Brasil são os da Escola de Comunicações e Artes da USP, da Universidade de Brasília e da Universidade Federal Fluminense, desenvolvidos a partir dos anos 60. A universidade particular FAAP (São Paulo) também mantém curso pioneiro, mais voltado à formação prática. Se nos três primeiros (USP, UNB, UFF), abrigaram-se pesquisadores oriundos da crítica e de grupos próximos ao novo cinema, na FAAP tivemos uma janela aberta para técnicos e cineastas da mega-produtora Vera Cruz. Nos últimos vinte anos, cursos de cinema têm proliferado pelo Brasil. Universidades como UNICAMP, UFSCAR (São Carlos), Universidade Católica de Recife, UFSC, UFMG, UFPE, Universidade Tuiuti do Paraná, PUC/RGS; SENAC/SP e Anhembi-Morumbi, possuem Departamentos oferecendo formação de cinema em graduação. Cursos particulares de cinema e audiovisual tiveram forte incremento nos últimos dez anos em diversos pontos do país. Em pós-graduação, são oferecidos regularmente diplomas de mestrado e doutorado stricto-senso, com orientação especifica em Cinema, em programas de pós-graduação da UNICAMP, USP, UFF, UFSCAR, UFRJ e UNB. Universidades particulares como UNISINOS, Anhembi-Morumbi, FAAP, Universidade Católica de Pernambuco, Tuiuti, SENAC, entre outras, mantêm cursos de especialização e mestrado lato-senso ou stricto-senso em cinema.
Algumas questões metodológicas devem ser mencionadas ao traçarmos a inserção institucional dos Estudos de Cinema na universidade brasileira. O campo coloca-se de forma abrangente dentro de Departamentos de Artes e Comunicações, possuindo a particularidade da demanda de formação prática. Uma boa parcela de alunos que entram em cursos de cinema tem interesse em aprender a fazer cinema: utilizar uma câmera, dirigir, produzir, atuar, fotografar, montar, sonorizar, fazer roteiros, etc. A maior parte dos cursos de graduação, no Brasil e no mundo, encontra-se predominantemente voltada para este público, sendo ministrada por professores com carreira profissional na produção cinematográfica. No currículo, acessoriamente, está presente uma série de disciplinas envolvendo história e teoria do cinema. Predominantemente, cursos em Estudos de Cinema encontram-se voltados para a pós-graduação.
A área de Estudos de Cinema envolve um conjunto de expressões audiovisuais, mais ou menos articuladas em dimensão narrativa, a partir de uma miríade de estilos. Cinema é antes de tudo uma 'forma narrativa' (em seus primeiros tempos, e em alguns trabalhos de vanguarda, também é uma forma 'espetacular') que envolve imagens em movimento (em sua maioria conformadas pela fôrma da câmera) e sons. Na definição do campo cinematográfico encontramos animações digitais ou manipulação digital de imagens-câmera, trabalhos experimentais plásticos em proximidade com vídeoarte ou performance, narrativas extensas que cotejam novelas ou mini-séries televisivas. A narrativa com imagens e sons pode ter um corte 'ficcional' (quando entretemos o espectador com hipóteses sobre personagens e tramas fictícias) ou 'documentário' (quando entretemos asserções ou postulados, sobre o mundo histórico). Muitas vezes as definições não são tão claras e as cartas estão embaralhadas, mas o campo do cinema pode ser traçado sem preconceitos interdisciplinares. Estudos conceituais cruzados, assentando fundamento entre Literatura e Cinema, Pintura e Cinema, Teatro e Cinema, História e Cinema, Imagem Digital e Cinema, Música e Cinema etc, possuem ampla bibliografia. Estudos de Cinema, portanto, não é o ensino prático de como fazer cinema (embora possa e deva interagir com esta dimensão) e também não é o estudo das mídias, nem das humanidades (antropologia e história). É tudo isso, trazendo em seu centro irradiador a forma narrativa cinematográfica.
No centro estruturador dos Estudos de Cinema vislumbramos três disciplinas: 'História do Cinema', 'Teoria do Cinema' e 'Análise Fílmica'. Em História do Cinema trabalhamos a dimensão diacrônica da arte cinematográfica, seus diferentes períodos e movimentos. Analisamos também as produções nacionais (História do Cinema Brasileiro, Chinês, Francês, etc). Nesse campo cabem estudos autorais, centrados em personalidades da História do Cinema (o cinema de Bergman, Welles, Renoir, Kiarostami, Rocha, etc). Em geral, estudos em História do Cinema detêm-se no cinema ficcional. Recentemente tem aumentado espaço da pesquisa em cinema documentário dentro da história da produção cinematográfica mundial. Na abordagem dos momentos em que as vanguardas do século XX cotejam o cinema (expressionismo alemão, construtivismo russo, impressionismo francês, realismo italiano, surrealismo, cinema experimental, pós-modernismo) podemos constatar uma abrangência se delineia para além do estreitamente narrativo.
Temas que envolvem a própria noção de uma história do cinema, e a possibilidade de sua periodização, são trabalhados pela bibliografia em Teoria do Cinema. Noções essenciais para o estabelecimento da história do cinema, como a noção de Autor, são aprofundadas. Outro ponto que tem chamado a atenção na Teoria do Cinema é o questionamento da noção de 'nacionalidade' na definição dos diversos cinemas nacionais. Temas caros ao universo dos 'estudos culturais' (feminismo, minorias étnicas, estudos de gênero, a questão do sujeito) percorreram o campo dos estudos de cinema nos últimos dez anos. Também o horizonte da filosofia analítica e do cognitivismo foi mapeado. Nos anos 60/70/80, o conceitual do estruturalismo francês, a semiologia (Metz) e depois o pós-estruturalismo de Deleuze, Lacan, Derrida e outros, tiveram forte influência. A Teoria clássica do cinema também compõe o campo de estudo, através da influência do impressionismo (Epstein, Dulac, Balazs), do construtivismo (Vertov, Eisenstein), da fenomenologia (Bazin, Zavatttini), do realismo (Kracauer). A reflexão recente sobre cinema documentário mostra-se densa, acompanhando um aprofundamento da tendência analítica/cognitivista na contraposição aos estudos culturais. A Teoria do Cinema é, portanto, a disciplina dos Estudos de Cinema que fundamenta estudos históricos e autorais, algumas vezes questionando seus fundamentos.
Um terceiro horizonte dos Estudos de Cinema pode ser delimitado na Análise Fílmica. Definimos assim a pesquisa que se debruça sobre o filme propriamente e suas unidades (fotogramas, planos, seqüências, cenas, etc). A análise fílmica detalha a dimensão estilística do cinema, servindo de substrato para a pesquisa histórica/autoral. O ponto clássico da análise fílmica é a montagem, conceito em moda dos anos 20 até os anos 60. Elementos estilísticos como profundidade-de-campo, plano-seqüência, entrada e saída de campo, espaço fora-de-campo, mise-en-scène, raccord, falso raccord, olhar, interpretação de atores, música, falas, roteiro, fotografia, cenografia, etc, compõem os tijolos sobre os quais se constrói a estilística cinematográfica. A análise fílmica fornece substância concreta para o trabalho com a teoria do cinema, embasando a reflexão. Olhar o estilo é o último degrau que se consegue percorrer no corpo-a-corpo com o filme. Em função do movimento contínuo, e da ampla quantidade de elementos que marcam a estilística cinematográfica, analisar exige uma verdadeira educação do olhar. O objetivo desta educação deve ser o abandono dos níveis mais imediatos de conteúdo, conseguindo o 'leitor' elevar-se até a dimensão da cena propriamente.
Para terminar, é importante esclarecer uma questão. Como a arte cinematográfica sofre, desde sua origem, a mediação da técnica, é comum o discurso que nega sua especificidade histórica. Quando a questão tecnológica é sobre-determinada, transforma-se Estudos de Cinema em estudos de mídia. O cinema seria, então, uma máquina, uma mídia, que tenderia a desaparecer como outras máquinas antigas do século XIX. Nossa visão é que o cinema é uma forma narrativa relativamente estável, veiculada através de mídias diversas. Oscila na forma em função do quesito tecnológico, entre outros mais ou menos determinantes. A sobreposição cinema/mídia termina numa visão deformada do conceito de audiovisual, levando à confusão entre instância narrativa e mídia que a veicula (em nosso caso, o meio não é a mensagem). Nessa visão, se uma mídia evolui tecnologicamente, a narrativa que veicula também deve desaparecer. Como isso não ocorre, surge uma esquizofrenia entre análise e conteúdo, expressa na demanda insistente de um outro Cinema, que se adeque a nova máquina midiática. Postura que tem traço normativo, querendo determinar como o cinema deve ser, ou desaparecer, a cada nova invenção tecnológica: o surgimento da televisão, do vídeo, da internet, das novas máquinas produtoras de imagens sintéticas, etc. A visão da arte-tecnológica que chamo de evolucionista, com forte presença na universidade brasileira, tem dificuldades em lidar com a evidência da simultaneidade, entre novas e antigas mídias, muitas vezes não convergentes.
O campo dos Estudos de Cinema tem, portanto, em seu núcleo a dimensão diacrônica da narrativa cinematográfica, dimensão que realça sua estilística particular, podendo-se abrir para outros meios. Pode abranger o estudo das dinâmicas séries televisivas; o cinema seriado do início do século XX; as formas tipicamente digitais; a própria vídeo-arte e a tradição do cinema experimental; o documentário produzido pela televisão, etc. Imaginemos, portanto, um núcleo narrativo-imagético duro que se lança sobre mídias diversas, sem que a determinação midiática ocupe espaço central. A constituição da SOCINE, enquanto sociedade científica, sempre teve o cinema em seu núcleo, pensado como campo aberto que interage com a expressão através de imagens em movimento e seus sons.
Fernão Pessoa Ramos - professor do Departamento de Cinema/UNICAMP. Ex-Presidente da SOCINE, autor de Mas afinal... o que é mesmo documentário? (SP, Ed. Senac, 2008).

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