Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelador como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente, mas de uma estratégia”. – Ismail Xavier – Cinema: Revelação e Engano.
De onde veio?
O neo-realismo ficou conhecido como o apogeu do cinema italiano. O movimento cinematográfico que marcou a história da arte nasceu na Itália que ainda ardia em chamas e estava enterrada nos próprios escombros.
O cinema italiano, antes conhecido por melodramas, divas glamorosas dos anos vinte e por produções de temática bíblica, foi transformado por este cinema clandestino, criado por cineastas e críticos no fim da era fascista.
Da visão de Roberto Rossellini em seu Roma, Cidade Aberta de 1945 surgiu o cinema tratante da situação social rural e urbana do pós-guerra. A linguagem adotada era simples, evitava-se rebuscamentos e havia a preocupação de se captar o cotidiano dos proletariados, camponeses e da pequena classe média, diante do país que precisaria se reconstruir física, financeira e politicamente. O material produzido para o filme se confunde com imagens clandestinas registradas durante a “ocupação” nazi-fascista.
No ano seguinte, Paisà, também de Rossellini, explorou o contato entre o povo italiano e o americano, em uma apologia a liberdade. Outro marco é o filme Ladrões de Bicicleta, 1948, de Vittorio de Sica, que reforça o caráter da utilização de atores não-profissionais e histórias ligadas à realidade.
Uma frase de Cesare Zavattini resume bem este espírito: “Quis que meus filmes fossem os mais elementares, os mais simples, a bem dizer os mais triviais possíveis. O ideal seria criar um espetáculo cinematográfico com noventa minutos da vida de um homem a quem nada aconteceu”.
É fundamental ressaltar que na pobreza em que a Itália vivia só seria possível realizar um filme com recursos mínimos. Assim, os estúdios foram trocados pelas ruas e ambientes naturais, e os equipamentos caros do cinema ficção foram abandonados. Uma decisão sábia motivada pela necessidade ou por ideais?
Se falar que o neo-realismo surgiu da luta contra o fascismo e o horror do nazismo parece mais fílmico do que real, vale lembrar que o cineasta Visconti fazia enfrentamento armado junto aos rebeldes, sendo preso e quase morto.
Ossessione, de 1942, foi implacavelmente perseguido pelas autoridades, sendo censurado e praticamente destruído, a ponto de no final da guerra não haver mais cópias do filme.
A expressão “neo-realismo” foi criada por Umberto Bárbaro em 1943, referindo-se as obras de Maciel Carné, consagrado naturalista, o que demonstra a existência de um movimento pré-neo-realista no cinema italiano, já interessado pelo social, em mostrar os contrastes entre a aristocracia e o povo e expor as mazelas e frutos da corrupção.
O filme 1860 (Alessandro Blasetti), por exemplo, já utilizava atores não profissionais. Para alguns, entretanto, o termo neo-realismo surgiu em 1942 para definir Obsessão, o filme de Luchino Visconti (1906-1976), considerado a obra inaugural do gênero.
A princípio o neo-realismo teve dificuldades de entrar no mercado e conquistar espaço. A repercussão junto ao grande público não foi a esperada para filmes que tratavam da realidade, mas grande parte da culpa recai sobre os exibidores, que preferiram mostrar os filmes americanos censurados durante a guerra, lucro certo.
Apenas com a divulgação dos ideais que cercavam o movimento, o neo-realismo ganhou força, atingindo desde zonas industriais até países em desenvolvimento, como o Brasil.
O Brasil neo-realista.
O “menor” no cinema brasileiro.
Por aqui, cerca de dez anos depois, vimos filmes como Rio, 40 graus (1955), Rio – Zona Norte (1955) e Vidas Secas (1963) do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, fortemente influenciados pelo neo-realismo.
É necessário parar um instante em Rio, 40 graus, pois os temas tratados no filme e seu surgimento estão ligados aos filmes analisados posteriormente.
cena do filme Rio, 40 graus
Segundo Glauber Rocha, o filme “revelava o povo ao povo. Sua intenção, vinda de baixo para cima, era revolucionária. Suas idéias eram claras, sua linguagem simples, seu ritmo introduzia o complexo de grande metrópole, a câmera narra e expõe com ardor os dramas, as misérias e as contradições da grande cidade: o autor estava definido na mis-en-scene”.
Citando Roberto Pires: ‘O neo-realismo foi decisivo para a alma de Rio, 40 graus, um marco no cinema brasileiro, por ser o primeiro a retratar verdadeira e criticamente o tema da pobreza na nossa sociedade. Jean-Claude Bernardet comenta que Nelson lançou com Rio, 40 graus “o tema da criança favelada no cinema brasileiro: os engraxates favelados, ora tristes, ora alegres, eram o verdadeiro centro dessa sociedade múltipla retratada pelo filme, bem como sua vítima indefesa”. O esquema de produção não fugiu da regra neo-realista: fora dos grandes estúdios, o baixo orçamento não impediu que este filme fosse artístico e socialmente ambicioso’.
Parece natural que o movimento viesse a influenciar um país que possui cineastas com preocupações sociais. Traços do neo-realismo que mostra a miséria e a ilusão da esperança podem ser vistos em A Hora da Estrela, que conseguiu obter expressiva bilheteria e sucesso internacional.
Teríamos visto no aflorar do modelo neo-realista italiano um modo de repudiar o cinema hollywoodiano e enterrar de vez as tentativas de imitá-lo?
Para formar um elo entre o neo-realismo italiano e o cinema contemporâneo brasileiro bastam dois exemplos – Pixote (1980) e Cidade de Deus (2000), e um breve resumo das principais características das produções italianas que poderiam ser aplicadas a eles.
Locais autênticos
Retratação da vida natural de seus moradores
Atores não-profissionais
Olhar especial para o cotidiano
Subdesenvolvimento e desemprego
Delinqüência nas cidades e problemas sociais no campo.
Problemas comuns, como o abandono na velhice
Em outras palavras, o compromisso com a verdade e a realidade.
Sabemos que o movimento brasileiro não pode ser filiado a apenas uma tendência neo-realista. Isso se define muito bem ao analisarmos a originalidade das obras, a retomada do diálogo com a linguagem nacional e a discussão sobre a cultura popular.
A novidade não tão nova.
Um mergulho em “Pixote: a lei do mais fraco”.
“A infância abandonada está crescendo e continua a viver em profunda pobreza, transformando-se na sementeira da delinqüência, da prostituição e do crime”. – Alcindo Guanabara, jornalista, 1917.
O filme Pixote: a lei do mais fraco traz como protagonista uma criança da periferia de São Paulo, acostumada com a vida miserável do bairro. Na versão em vídeo, vemos um documentário em que esse fato, juntamente com o vocábulo criança, é ressaltado diversas vezes, talvez no intuito de distanciar o termo “criança” do termo “menor”, deixando claras as intenções do filme. O “menor” é fruto da mídia, de uma leitura da realidade. A “criança” é fruto da realidade e da sociedade que a moldou.
Este documentário termina mostrando uma mãe e nove filhos na porta de um barraco. Uma destas crianças é Fernando Ramos da Silva, o ator que interpreta Pixote. Se este documentário não houvesse sido sabiamente produzido com um tom jornalístico, talvez não notássemos a diferença entre ele, a realidade, e o filme, ficção, que se segue.
Essa fronteira tênue entre ficção e realidade tornou-se ainda mais famosa (e curiosa) por Fernando ter seguido a suposta trajetória de seu personagem (imaginada com as últimas cenas do filme) e morrido, dez anos após as filmagens, em um tiroteio com a polícia.
Pixote foi baseado no livro de José Louzeiro A infância dos mortos. O livro em si foi baseado em um fato real, o caso Camanducaia, no qual cento e dois menores foram espancados e atirados de um desfiladeiro pela polícia de São Paulo.
Problemas envolvendo menores infratores não eram novidade em 1980, ao contrário, eram temas utilizados por políticos e jornalistas à exaustão. A sociedade se alarmava com o aumento da delinqüência entre crianças e adolescentes, reivindicando medidas severas de repressão. Hoje, com o assassinato de dois jovens por um menor de dezessete anos, vemos a sociedade pedindo que a maioridade penal passe para os dezesseis anos. Um tema atual vem nos mostrar que a realidade que conseguiu ganhar as telas de cinema ainda está presente.
As medidas repressivas vieram com mudanças na lei. Antes apenas menores acima de quatorze anos eram considerados responsáveis pelos seus atos criminosos. O código republicano passou esta idade para nove anos. Esta mudança aconteceu em 1890, quando surgiu o termo “menor”. Tais medidas vieram com a política de ressocialização e de recuperação de menores, representada hoje pela Funabem.
Se o problema não era novo por que a comoção e polêmica com o filme?
O filme chegou as telas em 1980, os anos da abertura. Passados vinte anos de censura, a sociedade redescobria a liberdade de imprensa (o AI-5 foi revogado em 31 de dezembro de 1978).
Pixote não sensibilizou por mostrar novidades, mas por dar visão e voz a um povo que havia passado os últimos vinte anos amordaçado. Pixote mostrou a violência contra menores, pobres, negros, homossexuais, toda espécie de excluído. A escolha do tema poderia ser relacionada à proposta neo-realista num forte diálogo. O menor abandonado foi visto de frente, chamando o espectador a testemunhar a vida a partir de sua ótica, como havia feito Nelson Pereira em Rio 40º, revelando uma complexidade da condição do infrator, antes relegada a representação de arquétipos.
Pixote é uma ficção-verdade, diz o historiador André Luiz Vieira dos Campos. Não seria o neo-realismo uma ficção verdade também?
Se não havia o fascismo para gerar protestos e resistência, havia o comportamento de delegados, policiais e juízes. Fernando Ramos não só não era ator como interpreta um papel de sua própria realidade (vide a futura tragédia). Os outros personagens do filme são mesclas de atores e não-atores, estes últimos relacionados aos menores. Os cenários são as ruas, favelas e a casa de detenção. O que é mostrado é a realidade do descaso, da violência do ser humano e da falta de perspectiva e de horizontes (não é este o sentimento que temos no final de Ladrões de Bicicleta?).
A estética é primorosa como nos diversos filmes neo-realistas e naqueles influenciados pelo gênero, mostrando que a simplicidade não impede uma obra de se tornar grandiosa.
– O filme termina com Pixote andando, equilibrando-se sobre os trilhos de uma estrada de ferro até sumir no horizonte. –
Tudo de novo e ao contrário.
Onde chegamos com Cidade de Deus?
“O neo-realismo foi a descoberta de que afinal nada é mais perigoso do que a estética”. – Roberto Rossellini.
“Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem. Portanto, o processo de simulação não é o da imagem em si, mas o da sua relação com o sujeito”. – Ismail Xavier.
Cidade de Deus veio na nova safra do cinema nacional sacudir o público e dividir opiniões. O filme mostra a vida de bandidos da cidade de deus, fala de como as pessoas acabam se envolvendo com o tráfico, como este leva aos conflitos, como se relaciona com a polícia, o que causa na comunidade. Será?
cena do filme Cidade de Deus
Os roteiristas do filme criam um personagem que é menino de comunidade. Ele é um dos poucos inocentes que quer levar uma vida honesta. Na narrativa, ele é fotógrafo, para levar o espectador a acreditar que está vendo a história do ponto de vista da comunidade e não por olhos externos que fabricam leituras filtradas e remodeladas. É irônico que este personagem almeje fazer parte da mídia e “escapar” do futuro que persegue os jovens ao seu redor.
Enquanto Pixote misturava membros das favelas e comunidades com atores consagrados, Cidade de Deus pega atores desconhecidos para lançar ao estrelato. Por que renunciar ao termo não-atores? Porque antes das filmagens começarem foi feito um extenso laboratório com os jovens escolhidos para a produção.
O filme também foge da narrativa simples e usa o ritmo de videoclipe, com idas e vindas temporais para contar a história. O equipamento e a produção por trás do filme estão muito distantes dos filmes nascidos do cinema marginal.
Cidade de Deus conseguiu ser um híbrido exótico de propostas antagônicas: Mostrou que a violência urbana, mesmo não sendo uma novidade, tem enorme potencial cinematográfico. Tentou retratar uma suposta realidade não-revelada, criando uma obra digna das páginas de jornal e noticiários da tevê que vemos todos os dias em nossas casas. Buscou usar pessoas envolvidas com a realidade a ser apresentada (o neo-realismo considerava esta uma forma de criar reações autênticas por parte dos atores) e moldou os atores com oficinas artísticas até que se enquadrassem no perfil requisitado. Expôs as entranhas da violência sendo ao mesmo tempo um filme limpo, dégradé de tons de pele. A realidade maquiada.
Um dos momentos mais instigantes é a seqüência em que Zé Pequeno manda um jovem atirar em duas crianças (ou menores?). Aqui há uma semelhança narrativa com o neo-realismo, relacionado ao respeito pela verdadeira duração dos eventos (o plano seqüência).
Acompanhamos o grupo chegando, encontrando as crianças, as brincadeiras, os deboches, a demora da escolha, as ameaças, os tiros, a dor, o choro. Como relacionar esta seqüência com o restante do filme e sua velocidade (supostamente) de tirar o fôlego?
Sobreviveu? Considerações Finais
O neo-realismo não veio como uma imposição de modelo, mas como uma opção. Foi sábia a decisão de fugir da mera cópia e adaptar a linguagem, enriquecendo nossas produções. Toda vez que o cinema brasileiro decide pelo copy & paste do modelo americano, o que se vê são produções de pouca qualidade, independentemente do público pagante.
As idéias neo-realistas foram transformadas por ideais e cotidianos, resultando em filmes marcantes adequados à proposta brasileira de cinema. Isso mostra que o neo-realismo é capaz de se adaptar sem perder a essência.
Como o nosso cinema tem explorado a miséria do barro e da fumaça, fica a dúvida se Vidas Secas ainda dará frutos no século XXI, como deram seus primos urbanos. Por enquanto, a cidade está ganhando o duelo.
Bibliografia:
Xavier, Ismail. O Olhar – Cinema: Revelação e Engano
Cinemais No 34 – Neo-Realismo na América Latina.
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro.
Bernardet, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
Pires, Roberto: A influencia do Neo-realismo no cinema brasileiro.
Moreira, Ivan. Neo-realismo – O apogeu do Cinema Italiano.
Ferreira, Jorge e Soares, Mariza de Carvalho. A História vai ao cinema.
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Eric Novello é escritor e roteirista, formado no Instituto brasileiro de audiovisual - Escola de cinema Darcy Ribeiro.
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