quarta-feira, 23 de junho de 2010

O cinema vai à escola

Apesar dos avanços nas bilheterias, com recordes como “Tropa de Elite” ou “Se eu fosse você”, o cinema brasileiro ainda não conseguiu estabelecer um efetivo casamento com o público.

Por João Batista Melo

Um projeto de lei apresentado em 2008 pelo senador Cristovam Buarque, e já aprovado pela Comissão de Educação e Cultura do Senado, torna obrigatória a exibição de filmes nacionais nas escolas de ensino fundamental e médio. O objetivo, altamente louvável, é o de incentivar, crianças e adolescentes, a prática de assistir às produções nacionais, contribuindo para criar futuras plateias para o cinema brasileiro.

Apesar dos avanços nas bilheterias, com recordes como “Tropa de Elite” ou “Se eu fosse você”, o cinema brasileiro ainda não conseguiu estabelecer um efetivo casamento com o público. Os sucessos acontecem de forma episódica e num ritmo que não permite alimentar uma economia de mercado, tornando a produção de longa-metragens sempre dependente dos editais de fomento e das leis de incentivo.

Do ponto de vista de criação e fomento de plateia, os números relacionados à nova lei são impressionantes. Segundo o Censo Escolar de Educação Básica, em 2009 tínhamos 52.580.452 alunos nos ensinos médio e fundamental, dado que ganha mais relevo quando se pensa que no mesmo ano, o público de todos os filmes brasileiros nos cinemas (que foi 76% superior ao de 2008) atingiu 16.092.482 espectadores.

Assim, além do resultado estratégico, é possível imaginar um novo e importante mercado para os filmes infantis nacionais. Existem quase 200 mil escolas no país, e como a imensa maioria é composta por instituições públicas, abre-se a porta a um impactante segmento para o consumo das nossas produções cinematográficas. Afinal, em tese, nenhuma escola exibiria um filme pirata, menos ainda uma entidade governamental. É possível imaginar sistemas de aquisição de cópias de filmes parecidos com as grandes compras de livros efetuadas pelos governos para bibliotecas escolares. Mantidas as devidas distâncias, podemos ter um espaço similar ao boom que incrementou a indústria editorial, nos anos 1970 e 80, por conta da adoção de livros de literatura infanto-juvenil (os chamados “paradidáticos” ).

Mas há uma questão nevrálgica nessa mudança na legislação que tem passado ao largo das discussões. Considerando os limites mínimos estabelecidos pelo projeto de lei, haverá uma média de doze horas anuais de exibição, ou seja, 98 horas ao longo dos nove anos do ensino fundamental. Dos 3.415 longa-metragens realizados no país até 2002, apenas cerca de 70 filmes (2%) foram voltados especificamente para o público infantil. De lá para cá, a situação não mudou muito, apesar do incremento de setores como o da animação. Cinema infantil continua sendo o patinho feio da produção cinematográfica brasileira. Não é diferente o cenário quando se pensa também no cinema infanto-juvenil. Outro gênero, o familiar, é ainda menos visitado pela nossa cinematografia, sendo os trabalhos de Mazzaropi um caso quase isolado.

A situação se torna mais crítica quando se pensa que existem diferenças entre as faixas etárias de alunos, que deveriam também ser obrigatoriamente respeitadas. Uma criança de seis anos tem necessidades e capacidades muito diferentes das que teria uma de doze. Obrigá-las a ver o mesmo filme pode ser não apenas contraproducente, do ponto de vista dos objetivos do projeto de lei, mas até mesmo nefasto numa perspectiva psicológica e/ou pedagógica.

Se quisermos refinar os problemas derivados da aplicação da lei, vale observar que cada escola segue alguma linha pedagógica, o que abrange muitas visões divergentes acerca da maneira de se apresentar conteúdos às crianças, da utilização de recursos de multimídia e, enfim, da visão sobre a vida e a sociedade. Escolas que seguem o construtivismo, a pedagogia Waldorf, as linhas de Piaget ou Montessori, entre muitas outras, têm abordagens distintas sobre como a criança se relaciona com o mundo à sua volta. Essa percepção pode levar até a que alguns dos poucos filmes existentes sejam considerados como não adequados à exibição para os estudantes de determinadas escolas.

Não é qualquer um dos menos de cem longa-metragens infantis que podem ser exibidos para qualquer um dos 52 milhões de alunos do nosso sistema de ensino básico. E, ainda por cima, aproximadamente a metade dos filmes infantis nacionais foram produções de Xuxa e de Renato Aragão. Sem entrar no mérito ideológico de tais obras, obviamente essa característica pode restringir ainda mais a margem de escolha das escolas e professores. Será quase compulsória a exibição de tudo que estiver disponível, independente de critérios pedagógicos, aliás, independente de quaisquer critérios.

O projeto tem potencial para produzir benefícios óbvios para o cinema e a cultura nacionais, contribuindo para educar futuras plateias e para criar mercado efetivo para um gênero relegado a segundo plano. Sua grande limitação está no fato de que a exibição compulsória nasce descasada de um incentivo à produção. Na maioria dos países que possuem um cinema infantil expressivo, este somente se torna viável com o apoio público. É exemplar o caso da Dinamarca, que tem toda a produção cinematográfica subsidiada pelo Estado e onde uma lei determina que 25% dos recursos destinados ao cinema sejam canalizados para filmes infantis e juvenis.

No Brasil, nunca houve nada sequer parecido. Notável exceção é o projeto “Curta Criança”, desenvolvido pelo Ministério da Cultura e pela TV Brasil, que já viabilizou a existência de quase oitenta curta-metragens, um formato que poderia compor o número mínimo de horas de exibição nas escolas. Porém, como cada curta possui em média dez minutos, chegamos a um total de somente treze horas produzidas em seis anos. E certamente nem todos esses filmes são exibíveis para todos os estudantes. Neste ano, o Ministério da Cultura abriu, pela primeira vez, um edital para seleção de três projetos de roteiros para longa-metragens infantis. Mas não se chegou ainda à produção propriamente dita. São iniciativas muito importantes, mas tímidas e isoladas, nascidas da pressão dos produtores culturais envolvidos com o gênero e da decisão de um governo específico, não de algum dispositivo legal e institucional.

Em resumo, estamos ainda engatinhando no apoio à produção de um gênero que teria forte demanda com a aplicação da nova determinação legal. É como se uma lei criasse um “cartão alimentação” para ser usado em supermercados que não têm produtos em estoque nem dispõem de alguma legislação que faça os artigos chegarem às prateleiras.

João Batista Melo é mestre em multimeios pela Unicamp e autor da tese “A tela angelical: infância e cinema infantil” a ser publicada em livro no segundo semestre de 2010 (Ed. Civlização Brasileira). Contista, romancista e crítico de cinema, dirigiu os curta-metragens infantis “Tampinha” e “As fadas da areia”.

Fonte: Revista Caros Amigos

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